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MEMÓRIA DO SAMBA: AS GANHADEIRAS DE ITAPUÃ

Atualizado: 29 de dez. de 2021


Quando Dona Mariinha juntou-se ao grupo de amigos e vizinhos reunidos na casa de Amadeu, na segunda quarta-feira do ano de 2004, o bairro de Itapuã não imaginava o sucesso que faria em letras e arranjos. Naquela ocasião, ao puxar na memória sambas da época em que ganhava o sustento lavando roupas na Lagoa do Abaeté, nascia o Grupo Cultural As Ganhadeiras de Itapuã, que mais tarde ganharia, na categoria Álbum Regional, o Prêmio da Música Brasileira e representaria o estado da Bahia em uma festa televisionada para todo o mundo: as Olimpíadas Rio 2016.


Diante de tanta pompa e reconhecimento, o grupo de mulheres das mais diversas idades – que já dividiu palco com estrelas da música brasileira, guarda uma herança que se manifesta nas letras de seus sambas e na conservação de seus encontros: a delicadeza da vida do bairro de Itapuã, suas tradições, a beleza natural que já não se tem notícia, o desenvolvimento do seu comércio, seu povo e sua arte.

O que são ganhadeiras? De onde vem esse nome?

São as mulheres de ganho. As mulheres antigas, escravizadas, trabalhavam com vendas para ganhar alforria. O que vendiam, dividiam com seus patrões pela liberdade. Nós viemos depois e fomos mulheres de ganho de lavar roupa, vender peixe, acarajé… Cada uma teve a sua profissão. Beiju, pamonha, bolo, tudo isso minha mãe vendia. Então são mulheres que sobrevivem do seu ganho.

Como se deu a formação do grupo, lá em 2004?


Eu vou lhe explicar até como foi que eu entrei nessa história. Eu trabalhava com Tereza, que também faz parte do grupo, e Dina. Trabalhávamos catando camarão. Eu fiquei viúva, não tinha o que fazer. Foi aí que me arranjaram esse trabalho. Para não ficar parada, fui. Um dia, na véspera da festa do Bonfim, vínhamos eu e Herondina caminhando de volta pra casa, quando passamos pela porta da casa de Amadeu.


Foi aí que me chamaram: “Entra aqui, Mariinha”. Eu disse que não. Jaciara disse de lá: “É só uma besteirinha, não vai demorar”. “Então vambora entrar”, respondi. Entramos eu e Herondina. Ali fomos conversando sobre as coisas que existiam na Itapuã de antigamente: muita alegria, rancho, terno de reis, baile pastoril, lavagem… Isso faz nossa lembrança. Começamos a falar e foi saindo. Recordamos os sambas do Abaeté, das ruas, dos ternos. Começamos a lembrar das músicas que cantávamos na beira da lagoa pra lavar roupa. Essas coisas que chamam atenção das pessoas que não tem muito dinheiro e não tem muito o que fazer. Depois surgiu o nome Ganhadeiras de Itapuã.

Qual era o cenário artístico de Itapuã na época? Já existia algum movimento cultural que colocasse em cena a identidade do bairro?

Era muito pouco. O Malê Debalê já falava, mas não se apresentava aqui em Itapuã. Então não tinha muita coisa.




Como era a relação de vocês com a Lagoa do Abaeté?


Quando tinha aniversário de alguma lavadeira, a gente lavava cantando durante o dia e à noite fazia um samba na casa da aniversariante. Mamãe dizia assim: “Você chegou do Abaeté e já vai sair?”. Eu respondia: “Minha mãe, eu não cheguei agora? Vou para um aniversário, canto um bocadinho, e amanhã vou de novo para o Abaeté”. E ia cedo.

A gente chegava às cinco da manhã. Quando se podia lavar, a água vinha até a beira. Aqueles morros altos… Era lindo. Buliram ali, buliram acolá. Arrancaram um pé de uma grande árvore que fazia uma boa sombra. Meu tio Juvêncio, quando viu, saiu da lagoa muito aborrecido. Chegou em casa e me disse: “Olhe, minha filha, eu não vou ver, não. Mas você vai ver o Abaeté secar. Dona Olegária cortou o pé da árvore”. Ele disse que daquele pé fluía a água.



Logo depois tiraram a gente de lá. Fomos criadas, de pequenas, bebendo água, tomando banho, lavando roupa, cozinhando com essa água e ninguém morreu. Proibiram… Eu não sei se o Abaeté sentiu como a gente. Todo dia eu digo lá em casa que, se alguém falar que deram uma folga e pode lavar no Abaeté, eu panho roupa limpa, venho e lavo. Porque eu tenho muita saudade de lavar.

Quando minha filha ficou moça, precisava se formar ou ia casar, eu lavei dez roupas de ganho da rua. Tinha uma casa que mandava cem peças, sem faltar uma. Podia passar, mas menos de cem não vinha. Mas eu nunca deixei de gostar de vir lavar. Às vezes me perdia da hora, olhava e estava tudo escuro. Minha mãe me criou lavando aqui. Meu pai morreu eu tinha quatro anos, ela ficou grávida do meu irmão caçula, então eu ajudava a lavar, a vender… Era isso pra criar os filhos. Me criei no Abaeté. Agora ele está triste, mas o que se pode fazer? Foi assim que quiseram. Ele está triste e eu também.


As senhoras catalogaram algumas cantigas de roda e sambas antigos para produção musical. São autorais? São canções populares?


Foram criadas na época que lavávamos roupas na lagoa. Chovia e a gente cantava porque estava chovendo. Eu não sei bem de onde vieram as criações porque desde menina que eu já escutava, são da minha memória afetiva. Hoje as crianças não brincam mais, mas nós brincávamos muito de roda, de cozinhado. Tudo isso rendia canções. Eu mesma nunca fui de sair. Minha irmã que gostava de sair em terno, em rancho. Eu fazia roupa, mas na hora não acompanhava. Eu tinha vontade e depois me reprimia.


Depois de velha que achei que deveria ir e estou aqui, no meio disso. Mas também não sei sambar, sabe? Eu só sei enrolar. (Risos). Fico ali na roda, ajudando a cantar… Mesmo estando rouca, ainda me meto a besta porque eu não vou parar. Quem para é quem morre!

Quantas mulheres fazem parte do grupo hoje?

Somos 29. Já fomos 35.




Todas elas são de Itapuã?

Algumas nasceram em outros bairros, mas vivem aqui. Foram criadas aqui.

E as crianças? De que maneira estão inseridas? Elas representam a continuidade desse legado?


Hoje são dez crianças. Eu tenho uma neta e uma bisneta que vieram com sete, oito anos. Já começaram bem pequenas. E agora temos outras, como a neta de minha comadre Maria, que tem quatro anos. Essa danada canta, samba e ainda pergunta por que tem ensaio e não tem show. Mas elas só podem ir para shows quando eles acontecem durante o dia.

Existe uma ligação do grupo com uma determinada religião? Ou essa é uma questão de cada uma, individual?


É individual, cada uma com a sua. Tem pessoas de dentro do Candomblé e outras que são até feitas na religião. Mas não influencia em nada. Minha avó tinha um dizer que eu nunca esqueci: tudo que tem nome tem dono. Se Deus deixou é porque podia ficar, não sou eu quem vai tirar. Então eu respeito porque a fé é o que importa. Aqui ninguém zomba de religião e nem de nada de ninguém.


Me conta um pouco sobre a sua relação pessoal com o grupo. Era na casa da senhora e de Dona Cabocla que aconteciam as primeiras reuniões. Hoje a senhora é a Presidente do Conselho do grupo. Como foi traçada essa história?


É. Começou mesmo na casa de Dona Cabocla, quando eu ainda não estava inserida. Depois passou para a casa de Amadeu, quando me juntei ao grupo, e foi parar na minha casa. E aí virei Conselheira com o tempo.


Quais são as atividades impostas a esse cargo?


É uma questão de respeito e consideração. Quando as coisas acontecem, eles vêm me perguntar, me pedir uma orientação. Pedem para ver se aquilo é uma boa ideia ou se não é. Se eu achar que não é legal, peço que não coloquem a cabeça de vez. Sou uma conselheira. Se alguém quer se exaltar, não adianta, não serve. Sou mais para acalmar do que para colocar fogo.

Depois desses anos na vanguarda do fortalecimento da identidade da mulher de ganho de Itapuã, o que a senhora vê como retorno desse processo?


Olha, muitas fingem que não estão ligando. Nós convidamos muita gente, mas ninguém acreditou. Não botaram fé. No começo, cantávamos muito de graça em colégio, faculdade, o que chamavam a gente estava dentro. Então saíamos muito à noite. Diziam que a gente não tem o que fazer. Nós tínhamos essa fama. Eu nunca liguei.



A maioria nem dava importância, a gente queria mesmo era se divertir, conversar, rir. Um bocado de gente junto… Aí começamos a ganhar prêmios e as pessoas viram que nós levamos a sério.

Porque isso, pra a gente, é sério. Muito a gente não ganha. Alguns lugares vamos só por ir. Eles dão o transporte e às vezes uma merenda, mas eu vou da mesma forma se me disser que vou ganhar dinheiro. Para mim é a mesma coisa. Eu não vou dizer a você que não preciso. Eu preciso. No Rio, para as Olimpíadas, nós recebemos pela gravação, além de arcarem com muitas outras coisas. Mas trazer dinheiro no bolso, não. Só que a satisfação foi tão grande… Eu não paguei avião, nem hotel, comi, passeei e ainda fui representar a Bahia. Nós fomos para Veadeiros, Goiás Velho… Todos tratam a gente tão bem. Só o modo de tratar já é ganhar muita coisa.


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