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A VIDA EM CORES DE J. CUNHA



As festas populares que ganhavam espaço na Ponta de Humaitá, na Península de Itapagipe da soterópolis dos anos 50, tinham um cheiro especial para o menino José. Enquanto outros garotos, da sua média de idade, corriam para lá e para cá, desempenhando brincadeiras comuns à infância, J Cunha se aquietava a admirar as cores pintadas à mão nos toldos brancos que expunham as mercadorias dos feirantes, que mostravam desenhos de saveiros, sereias, santos e frases religiosas gravadas, letra após letra, na finalidade simbólica de comunicar.


Tudo aquilo era absorvido no seu repertório individual. Cercado pela tinta fresca e pela água do mar, o garoto cresceu em meio à mística mistura das cores, da observação do seu povo e da transformação da sua percepção visual nas mais diversas formas de arte.

Filho de pai servidor e mãe doméstica, J nasceu em um ambiente humilde, sem demasiados investimentos financeiros. Ainda menino, pegava jornais e revistas descartadas no lixo para utilização de recortes nas criações que fazia em tom de brincadeira.


“Em um determinado momento eu já estava pintando os nomes dos barcos em Monte Serrat. Lembro que as pessoas falavam: Olha! O filho de Moreno vai ser engenheiro, ele trabalha bem. Elas falavam isso porque, na época, ninguém dizia a palavra artista, não se falava em arte”, conta.

Na adolescência, para ganhar uma grana extra – que gastava para ir ao cinema, na maioria das vezes, começou a fazer cartazes para as normalistas, para as escolas e para aqueles alunos que estavam prestes a se formar. Logo depois, formou-se em torneiro mecânico, mas não exerceu a profissão. Uma professora do Senai, categoricamente daria o seu destino: Iria para a Escola de Belas Artes, onde teria, enfim, a oportunidade de investir seu tempo no consumo e dedicação da arte.


Na Escola, descobriu um novo mundo. Quadros por todos os lados, cores e cheiros, pessoas estranhas. O que via naquele espaço era algo que só teve acesso através no Jornal Cruzeiro, quando ainda menino.



“Devorei tudo o que pude, durante três anos, naquela biblioteca. Entrava nove da manhã e só saia cinco da tarde. Ou seja, não almoçava. Levava um pão no saco, às vezes com manteiga e às vezes sem nada, e ficava. Não estava fazendo romantismo. Era um senso prático. Se tivesse que almoçar, ia para casa. Você acha que ia fazer isso com aquilo tudo naquela frente?”, diverte-se.

A bibliotecária do lugar chegou a comentar na diretoria sobre a presença de um rapaz, que se mantinha a pão e água, a estudar. Isso lhe rendeu uma mitologia que não esperava. Um aluno que faz esse esforço, pensavam, é porque quer mesmo ser um grande artista. J Cunha não tinha outra escolha. Não era filho de classe média e não tinha dinheiro para comprar livros, mas não deixaria aquela chance lhe escapar.


A Escola de Belas Artes serviu de trampolim para os espaços que viria alcançar. Foi cenógrafo, figurinista e bailarino do Balé Viva Bahia, liderado por Emilia Biancardi. Viajou por diversos países, sempre aproveitando o cachê para visitar museus e acessar novos conhecimentos nos muitos museus onde esteve. Recebeu prêmios, assumiu exposições e participou de diversas bienais, sempre carregando o cunho sócio-político das manifestações populares da Bahia e da história do nordeste como mensagem principal do seu trabalho.


Em 1979 criou a identidade do primeiro bloco afro do Brasil, o Ilê Aiyê. Foi dele que surgiu toda a concepção visual da agremiação, em um estudo que analisava os significados políticos, ideológicos e religiosos do grupo.


“A partir do estouro do Ilê, com toda aquela originalidade, autenticidade, com a afirmação da identidade da Bahia, outros artistas começaram a enxergar aquela linguagem. Fiz a primeira roupa de Lazzo Matumbi, desenhei figurinos de grupos de samba e de axé e participei dessa criação também com artistas como Márcia Short, Márcia Freire, Netinho e Pimenta Nativa. Ao lado de Daniella Mercury, construí a identidade do “A Cor Dessa Cidade”, e juntos realizamos alguns outros trabalhos”, revela o artista.



O estilo de J Cunha, definido pela mistura de cores vibrantes e de traços precisos, é compreendido como um mergulho nas suas raízes, entre bantos e índios kiriris que viveram em Canudos na época da seca. Sua descendência é retratada de modo a reforçar a diversidade da cultura popular da Bahia, a mestiçagem, a fé, o sofrimento que advêm da pobreza e, junto com ele, a força, beleza e alegria da vida.


A ancestralidade, traço que carrega da gênese familiar, está sempre presente na arte e no mistério da sua fala.


“A minha família do lado africano é de uma casta chamada Nganga. É banto, mas tem relações com Nzinga, da Rainha Ginga. É de lá que vem o meu sangue. Além da parte espiritual dos orixás, nós temos também a questão cigana, do meu pai, e a mediunidade dos kiriris. Poderia ser um líder espiritual, mas não era o meu caminho. Eu conversei com os orixás. A minha escolha foi transformar tudo isso em arte.”

E assim seguiu manipulando pincéis nas telas brancas que ganharam suas cores. Uma decisão que, sem dúvidas, beneficiou a todos nós, baianos, nordestinos e brasileiros, que nos curvamos em reconhecimento à sua arte, tão viva em referências e significâncias que fazem parte da história e da memória do imaginário do nosso Brasil.


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