
Conta a mitologia egípcia que Osíris, filho dos deuses Geb e Nut, governava o Egito ao lado da esposa Ísis, durante uma era marcada pela prosperidade. Seu irmão, Seth, movido pela inveja e desejo de ocupar o trono, trama a morte de Osíris e passa, então, a reinar sobre a terra. Ísis parte em busca do corpo do marido, o encontra e por meio de magia, consegue dar a luz a um filho, o deus Hórus – que, por sua vez, vinga o pai, derruba o reinado de Seth e assume o governo do Egito.
Essa é apenas uma forma resumida de contar uma história que é cantada Brasil afora, embora muita gente não se dê conta ao entoar os versos de “Faraó Divindade do Egito”, clássico do repertório do bloco Olodum, lançado no carnaval de 1987 e composta por Luciano Gomes.
“O carnaval sobre o Egito e o Faraó deu ao Olodum esplendor e uma história consolidada internacionalmente. Nós pensávamos que essa música não duraria dez anos, mas ela chegou em 2017 sendo cantada por todo mundo, conhecida por pessoas que nem eram nascidas naquela época”, explica João Jorge Rodrigues, presidente e diretor cultural do bloco afro.
A música, de fato, tornou-se uma das mais reconhecidas no axé music e a principal do repertório do Olodum. “Eu falei Faraó”, quando puxado em qualquer lugar do país em que a música baiana tenha chegado, rapidamente recebe resposta. Mesmo 30 anos depois de seu lançamento no Carnaval, a canção ainda desperta curiosidade: qual a conexão entre o Egito e a Bahia?
Para acompanhar o turbilhão de informações que guarda na cabeça, João Jorge é um homem de fala rápida. Basta uma conversa para perceber o fascínio que tem pelo Egito Antigo – este expresso em quadros, fotos e livros que se referem ao tema, espalhados por sua sala na sede do bloco, no Pelourinho. Remanescente do Ilê Aiyê, chegou ao Olodum em 1982 e encontrou liberdade para escrever os temas carnavalescos, criando o conceito do que seria apresentado na avenida. Foi a oportunidade de colocar em prática o conhecimento que adquiriu na época em que estudou em um convento, e trocava o jogo de futebol com os colegas pelos livros da biblioteca que falavam de África, candomblé, espiritismo e, especialmente, do Egito.

“Os blocos de carnaval têm um tema. O assunto é pesquisado pelo diretor carnavalesco e busca falar sobre uma região, povo ou personalidade. Isso começou com o Ilê Aiyê e se espalhou por todos os outros blocos afro. Eu já havia me preparado para apresentar o tema Egito quando estava no Ilê, mas como vim para cá, ficamos na dúvida se apresentaríamos na comemoração de 10 ou 15 anos do Olodum. Esse é um tema rico e explicativo da origem da humanidade, da população negra e africana, que precisava ser mostrado”, relembra.
Baseado nos estudos do historiador e antropólogo senegalês Cheikh Anta Diop, que defendia a tese do Egito Negro Faraônico, o Olodum levou a temática para a avenida e descortinou um horizonte de possibilidades de temas para além dos já propostos por outros blocos afro. Assim, vieram “Madagascar – O Arco-Íris” (1988), “Núbia, Axum Etiópia” (1989), “Os tesouros de Tuthankamom” (1993), entre outros.
“Precisávamos apresentar algo radical nos anos 80. Países como Angola, Nigéria e Benim nos remetiam à escravidão. Resolvemos fazer, então, três carnavais para chocar a Bahia: Egito, Madagascar e Etiópia. Isso tudo teria que vir pra cá para além dos livros, tínhamos que pegar essas coisas e transformar em música maravilhosas. O Egito, assim como a Etiópia, foi um lugar onde o ser humano escreveu, leu, pensou em Deus, deixou templos, aprendeu a escrita, construiu civilização. A universidade e os meios de comunicação tentam dizer que isso não aconteceu na África. Aconteceu e nós precisávamos falar disso”, defende João Jorge.

O Olodum foi criado em 25 de abril de 1979 por um grupo de moradores do bairro Maciel-Pelourinho. O bloco, a princípio, surgiu com o objetivo de representar essa comunidade, discriminada e marginalizada pelo resto da população. A partir de 83, com a chegada de uma nova geração de pessoas oriundas de outros blocos da cidade – como o próprio João Jorge e Neguinho do Samba, criador do samba-reggae -, virou grupo cultural, passando a realizar atividades para além do período carnavalesco.
“Isso pareceu muito estranho porque, naquele período, os blocos todos tratavam de carnaval sem fazer nenhuma outra atividade. Em 83, nós tínhamos apenas 7 instrumentos. Pegamos esses instrumentos, demos para os meninos e meninas do Maciel-Pelourinho e formamos a primeira banda mirim de um bloco afro no país. Daí surgiu a Escola Olodum, que já tem 33 anos”, recorda o diretor. Além da Escola, também foi criado, nos anos 90, o Bando de Teatro Olodum, que já revelou nomes como Lázaro Ramos e Érico Brás.
À medida que avançava no debate e na luta por representatividade, o que antes era apenas um bloco passou a adquirir caráter de instituição. A defesa dos moradores do Pelourinho, as políticas de identidade, passeatas contra a repressão policial – tudo isso fez com que o Olodum despertasse a consciência crítica na juventude que se sentia representada por ele.
Reflexo disso, segundo João Jorge, são músicas como “Protesto Olodum”, que traz na letra denúncias e referências como a expansão da Aids no Brasil e o descaso ao povo nordestino.

“Este é o nosso hino social mais forte. Uma música que fala de Moçambique, da Aids, de Cubatão, da Etiópia… Um bloco do Maciel-Pelourinho apresentou uma música nacionalmente possível e, ao mesmo tempo, atual”.
Umbilicalmente ligado ao Pelourinho até hoje, o Olodum virou cartão postal da Bahia para os turistas e instrumento cultural para a comunidade que representa. Para João, a equação é simples: “Não existe Brasil sem África, Bahia sem Angola e Pelourinho sem Olodum”. Canções de protesto, histórias de faraós, deuses egípcios e outras civilizações avançadas da África ajudam a fortalecer a identidade do povo negro de Salvador e viram armas poderosas contra o racismo e a intolerância.
“O que buscamos com isso? Identidade. Você não pode mais ser chamado de macaco porque nós somos exemplos do começo do mundo, da civilização. Entende? Se você sabe de onde veio, isso te fortalece”, finaliza João Jorge.
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