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ELAS SÃO ARTE: 3 MULHERES NEGRAS QUE REVOLUCIONAM A CULTURA NA BAHIA


Foto: Editoria de Arte A TARDE


Saiba mais sobre o trabalho de Juliana Ribeiro, Onisajé e Ana Mametto, figuras expoentes da arte na Bahia


Um dos maiores celeiros culturais do país, a Bahia não deixa nada a desejar quando o assunto é mulher preta talentosa.


Para celebrar o Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, comemorado nesta quinta-feira, 25, em meio ao Julho das Pretas, o Portal A TARDE conversou com Juliana Ribeiro, Ana Mametto e Onisajé (Fernanda Júlia), três artistas negras, expoentes da cultura na Bahia e no Brasil, que são também símbolos de reafirmação das lutas antirracistas e feministas.

Acompanhe:



O samba resistência de Juliana Ribeiro



Foto: Divulgação

Cantora, compositora, historiadora, mestre em cultura e sociedade, apresentadora, comentarista de TV e dona de uma coluna de rádio. Juliana Ribeiro é, além de artista, uma porção de outras coisas, funções sociais, que segundo ela, estão diretamente ligadas a sua condição de mulher negra e brasileira.


“A gente efetivamente precisa se desmembrar para conseguir viver de arte no Brasil. Isso é uma realidade, então, assim como eu, a maioria dos brasileiros tem várias profissões. No meu caso, as minhas diversas profissões são desmembramentos da minha própria profissão como cantora”, pontua.

Baiana nascida em Salvador, Juliana é referência quando o assunto é samba. Através do gênero musical, ela descobriu um universo vasto e rico de manifestações culturais ancestrais, que faz questão de levar para os seus shows.


“Foi aquela porta que se abre e que me mostra que, para além do samba em si enquanto gênero musical, existia uma série de outras coisas que aconteciam [...] Descobri que existia maxixe, jongo, lundu, curimba, as congadas, os pontos [...] Essas matrizes musicais me interessam, fazem o olho brilhar. Elas vêm sempre acompanhadas de uma manifestação cultural e o fazer dessas manifestações é, por mais ancestral que pareça, extremamente atual, e isso me emociona demais. Eu acho que muitas pessoas, assim como eu, não conheciam e quando eu levo isso para os shows, é sempre um ponto alto”, conta.

Clementina, cadê você? E dentro dessas raízes, Juliana celebra de modo especial uma das maiores vozes do samba de todos os tempos, a carioca Clementina de Jesus (1901-1987). Conhecida como a “Rainha do Partido Alto”, a sambista ganhou diversos tributos musicais feitos pela baiana ao longo dos anos. Evocando toda a coletividade que só o samba tem, os shows aconteciam com a presença de dezenas de atrações, entre coletivos, artistas e bandas que dividiam o palco com Juliana.


“Sou apaixonada por Clementina de Jesus. O tributo continua, vai entrar na 7ª edição, mas para isso, eu preciso de financiamento. Inscrevo em editais sempre, mas nem sempre é aprovado. Juntar 30 artistas em um palco cantando a obra de Clementina não é algo simples, mas eu amo fazer, junto com Chico Assis, que dirige esse espetáculo comigo. Clementina é o elo entre essa ancestralidade africana e o Brasil atual. Sempre digo que ela sintetiza 300 anos de história em três minutos de canção. Ela não é dessa dimensão”, derrete-se a artista.

Além dos planos de trazer o tributo de Clementina de volta, Juliana pretende continuar homenageando outro ícone da música brasileira: Moraes Moreira. No carnaval, ela se apresentou com o show “Na moral, Moraes”, e a expectativa agora é levar a atração para outros palcos ao longo do segundo semestre do ano.



“A obra de Moraes Moreira não é sazonal, ela não é uma obra especificamente dedicada ao carnaval. Ao contrário, ela é uma obra extremamente diversa e que consegue transitar em vários gêneros. É um baiano luz. Ele desbravou, através do violão e daquela mão direita dele fantástica, uma série de sons e de possibilidades rítmicas dentro da melodia que são emocionantes e únicas”, aponta ela, que no momento também tem focado nos estudos como pesquisadora musical para mostrar como a música afro-brasileira é importante para a cultura.

“Pensando em doutorado, como uma forma de levar também para a academia esse legado nosso, que é ancestral, mas que também é cotidiano. A nossa história é muito musical, negra, afro-brasileira. É muito legal, porém, silenciada”.


A pluralidade de Ana Mametto



Foto: Flora Negri | Divulgação

A multiplicidade de profissões foi também uma escolha de Ana Mametto. Outra soteropolitana, criada no bairro da Fazenda Grande do Retiro, a cantora, atriz, apresentadora e jornalista lançou, no mês passado, o EP "Firmamento", com quatro canções que reforçam a identidade da artista, além de celebrar a vida, criação e ancestralidade.


“Firmamento, esse albúm diz muito para mim. Ele é muito mais além do que podemos ver através dos olhos. É um EP com canções que trazem momentos de contemplação. Eu e Yacoce [Simões, diretor musical e marido de Ana] desenvolvemos o álbum com esse propósito. Esse repertório expressa minha identidade e minha individualidade [...] Firmamento é isso, é amor, é sentimento, é a minha verdade”, celebra Ana.

Fora da música, Ana possui uma carreira robusta na atuação. E são muitos os “palcos” pelos quais ela já esteve: no teatro, foi a Rainha Titânia em uma versão baiana da famosa peça “Sonho de uma Noite de Verão”. No streaming, deu vida a toda poderosa Ana Lígia em “Só Se For Por Amor", série brasileira da Netflix. Agora, Mametto terminou as gravações de “As Aparências Enganam”, seu mais novo filme de comédia, onde interpreta uma influenciadora digital. O longa, segundo a atriz, deve estrear nos cinemas em meados do próximo ano.


“Um filme é divertidíssimo, uma comédia super leve e atual. A gente discute sobre um tema que está sendo muito falado, que é esse universo dos influenciadores digitais [..] É um elenco jovem, incrível, que eu tenho trocado e aprendido muito. Além de ter os meninos que são realmente influenciadores digitais, a gente tem atores consagrados como a Tânia Alves, Letícia Pedro, o Gabriel ‘Mosca’, que foi ex-BBB, e tem um elenco incrível do Ceará”, destaca.



A reportagem até que tentou arrancar uma preferência entre o canto e a atuação, mas para Ana, é impossível dissociar uma coisa da outra.


“Não existe essa comparação do que eu gosto mais de fazer se é cantar ou se atuar, elas duas estão exatamente unidas. A cantora é uma persona, quando estou no palco, eu estou atuando, quando eu estou no palco, eu trago uma personagem, quando eu canto uma canção, eu conto histórias, é um roteiro, um texto, então, ela precisa ser contada, não só cantada. Eu acho que o atuar traz para mim uma cantora mais completa, uma cantora que canta e conta histórias. O canto e atuação andam exatamente de mãos dadas”, pontua.

A todo vapor, Ana deve lançar, ainda em julho, o segundo clipe do EP Firmamento, feito por animação, da música “Estrela Cintilante". Em clima “solar”, como ela mesmo define, a lista de projetos futuros inclui ainda um novo álbum, além da preparação para o verão e o carnaval que ela já adianta: vai ser especial.


“Esse ano eu estou preparando um verão muito especial pra gente fazer uma preparação bem bonita para o carnaval. A gente já fica pensando no carnaval sempre porque é quando a gente celebra, quando a gente brinda, quando a gente explode de felicidade. O carnaval vem para isso. E esse segundo semestre vem com um novo álbum, que eu também vou estar apresentando para vocês, que é um álbum mais festivo, mais explosivo, mais solar”, diz.


Onisajé: a vanguarda do Teatro Preto na Bahia



Foto: Danilo Sampaio | Divulgação

Quando o assunto é teatro, é impossível não pensar em Onisajé (Fernanda Júlia) como uma das grandes referências no estado. Diretora teatral, dramaturga, preparadora e formadora de atuantes, ela é também palestrante sobre o Teatro Preto, um movimento cultural que se originou da luta contra a opressão e hoje se destaca como uma expressão artística essencial para celebrar a arte, a cultura e a história da comunidade negra.


O cenário está montado, as luzes estão preparadas e os atores estão prontos para entrar em cena. No entanto, para Onisajé, o processo vai muito além do simples ato de apresentar uma peça.

Em quase três décadas de carreira, ela ressalta a dificuldade de encontrar uma dramaturgia que aborde as crenças e tradições afro-brasileiras, e por isso, a necessidade de preparar toda a equipe.


“Em todos os trabalhos que eu faço, há um momento dedicado para a preparação, pois isso também ajuda na formação dos atuantes. A dramaturgia, ela surge quando eu olho em volta e percebo que o que eu quero falar, enquanto encenadora, eu não encontro escrito em nenhum tipo de dramaturgia. Falar de orixá, colocar o orixá no centro da cena, colocar o orixá como protagonista da ação. Contar esse teatro mitológico, afro-mitológico, que é o teatro que eu faço, esse teatro preto de candomblé”, explica.

O teatro preto de candomblé é uma expressão artística que coloca os orixás no centro da cena, os deuses e deusas da religião afro-brasileira. Onisajé conta que a conexão entre o teatro e a religião aconteceu de maneira concomitante. Nascida em Alagoinhas, no leste da Bahia, ela é filha e neta de ialorixá, e foi iniciada quase ao mesmo tempo em que entrava em cena, pela primeira vez, em um espetáculo da escola.


“Quando eu subi no palco pela primeira vez, as energias que eu senti, as coisas que eu consegui construir como atuante, foram pela lente e pelo olhar do candomblé. Só que eu não percebo isso de imediato [...] Quando eu estava já perto de me formar como diretor na escola de de teatro, no curso de direção teatral, eu entendi que o candomblé era a lente por onde eu enxergava o fazer cênico”, lembra.

Com o objetivo de fomentar o teatro preto, ainda no município, Onisajé fundou, em 1998, o Núcleo Afro-Brasileiro de Teatro de Alagoinhas (NATA), encerrado 21 anos depois, em 2019. Neste mesmo ano, ela protagonizou um marco para arte e a cultura no estado: se tornou a primeira diretora negra a assumir uma peça na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (Ufba), ao encenar o sucesso “Pele Negra, Máscaras Brancas”. No entanto, ela diz não enxergar isso como um prêmio, e sim como uma dolorosa revelação sobre as desigualdades raciais no meio teatral.


“Não é prêmio, é demérito porque já existiram muitos e muitas diretoras pretas antes de mim. Não faz sentido, em 2019, eu ser a primeira diretora negra a dirigir um espetáculo da Companhia de Teatro da Ufba, uma universidade sediada em Salvador, que é a cidade com maior quantitativo de pessoas pretas fora do continente africano. Efetivamente, é mais um marco que demonstra o racismo ao qual somos submetidas e que a Universidade tem que fazer muito esforço para superar”, lamenta.

Onisajé foi também a primeira mulher negra a dirigir um espetáculo pelo núcleo de teatro do complexo cultural do Teatro Castro Alves.


“Eu tenho um monte de ‘a primeira negra’ e não perco muito tempo me enaltecendo. Se eu sou a primeira no século 21, significa dizer e compreender o tamanho da invisibilidade de encenadoras pretas no cenário profissional de teatro da Bahia [...] As encenadoras pretas estão se posicionando, estão tendo possibilidades de se colocar, de evidenciar seus trabalhos, mas ainda é muito tímido”, diz ela ao destacar o trabalho de nomes da dramaturgia preta como Nivalda Costa, Lúcia Di Sanctis e Evani Tavares Lima.

Em meio a uma jornada repleta de paixão e dedicação, Onisajé vislumbra um futuro repleto de trabalhos desafiadores. Ela está mergulhada no estudo e criação de roteiros, tendo participado de uma sala de roteiro, e recebeu um convite especial para escrever a sinopse de um filme, abrindo portas para novas possibilidades de narrativas no universo audiovisual.


A escrita é um aspecto importante de seus planos futuros.

A diretora pretende compartilhar suas dramaturgias e até o doutorado, defendido em 2021, com um público mais amplo. Ela também deve lançar, em breve, dois livros: um sobre contos de terreiro, e outro sobre poesia erótica. O retorno aos palcos é outro desejo latente da diretora. Após 20 anos, ela está trabalhando na escrita de um solo teatral, um projeto ainda sem data para entrar em cena.



Julho das Pretas e arte na Bahia


O Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha foi instituído em 1992 durante o primeiro Encontro de Mulheres Afro-latino-americanas e Afro-caribenhas, na República Dominicana. O objetivo é fortalecer a luta por igualdade de gênero e combater o racismo e o machismo presentes na realidade das mulheres negras da América Latina e do Caribe.


A data escolhida, 25 de julho, é uma homenagem à líder e ativista Tereza de Benguela, símbolo de resistência e empoderamento para mulheres negras na história.

Juliana Ribeiro considera o dia como um marco “importantíssimo" e diz que o Julho das Pretas reconfigura o calendário na Bahia.


“A gente tem um mês dedicado a pensar sobre esse racismo, sobre esse machismo que é estrutural e que nunca se fala. É claro que o fato de você precisar ter um marco como o Julho das Pretas é a prova cabal de que essa disparidade entre homens e mulheres existe [...] Na minha opinião, o Estado deveria estar propondo ações continuadas, de todos os tipos de formação intelectua e acho que julho deveria ser um mês de culminância de todas essas ações, mas isso não acontece”, lamenta.


Onisajé, diretora de teatro

Trazendo a luta da mulher preta para o cenário artístico baiano, Juliana afirma que muitas precisam sair de sua região e ir para grandes centros urbanos como São Paulo para conquistar reconhecimento. No entanto, ela destaca que os movimentos de mulheres, como os grupos de samba formados exclusivamente por mulheres, têm ganhado força.


“Tem vários grupos que estão se juntando, mulheres que estão se juntando e fazendo roda só de mulheres. Já que não há um consumo direto da musicalidade feminina, então o que é que as mulheres estão fazendo? Estão se aglutinando. Tamo indo de coletivo para frente, formando grupos e aí tem vários. Samba das Comadres, Samba das Pretas, Sambaiana [...] A gente ‘broca’, a gente toca e canta muito bem. Até porque uma mulher para para estar num lugar de destaque em música, ela precisa estudar o dobro e se for uma mulher negra, vai ter que estudar o triplo? Esses são os resquícios do nosso machismo e do nosso racismo estrutural”, diz.

Para Ana Mametto, o baiano é “bairrista” e está aberto ao consumo da música de mulheres pretas, mas o problema é que falta visibilidade para estas artistas.


“Eu vejo o povo da Bahia muito aberto, muito diversificado. A gente gosta de consumir a nossa música. A gente gosta de ouvir o que é nosso e eu não tenho dúvida que tem muita gente que quer nos ouvir. O que falta é visibilidade, essa visibilidade que nos leva até essas pessoas [...] Acho que lugar nenhum do Brasil tem um comportamento que o baiano tem de gostar do que é nosso, de ouvir o que é nosso. Isso é incrível. Tem muito talento, tem muita gente cantando ancestralidade, cantando música, contando uma história, mas a gente não tem espaço para se mostrar”, aponta ela, que se diz esperançosa com a volta do Ministério da Cultura (MinC) no novo governo.

“Estou bastante esperançosa. Acredito que a gente está passando por uma fase de recomeço. Eu espero que esse espaço para a mulher preta chegue com essas leis de incentivo que o estado apoie, e esse retorno do MinC me faz acreditar muito nisso assim. Estou naquele momento de aguardar as coisas começarem a acontecer, os editais de apoios do estado para a nossa cultura e, principalmente, pelas mulheres pretas artistas da Bahia. Tô no aguardo, estou na esperança, estou observando e se precisar, vou cobrar”, promete.


Onisajé destaca que a arte é um poderoso instrumento para sensibilizar as pessoas em relação às questões de raça, gênero e classe, e promover, assim, uma transformação social mais profunda e consciente. Ela enfatiza que a mulher negra sustenta a sociedade, auxiliando na construção do processo civilizatório e que as contribuições dessas mulheres precisam ser evidenciadas através da música, cinema, pintura e todas as formas de expressão artística, permitindo que suas histórias sejam contadas e suas vozes sejam ouvidas.


“É muito importante que essas mulheres sejam vistas no espaço da arte, porque elas não só colocam as temáticas relacionadas às questões de raça e gênero e classe, mas também suas propostas poéticas, de como dialogar, ver e explicitar por meio da arte, suas conjecturas, os seus pensamentos e posicionamentos. Então, elas movimentam tudo [...] Porque é isso, a gente pode falar e falar com uma voz alta. Quando a gente está nesse espaço de criação, conseguimos trazer à tona, detalhes: a vida da mulher negra, da mulher indígena, é uma vida extremamente peculiar, com desafios que é que uma boa parte das mulheres brancas no Brasil, mesmo ela sendo pobre, não passam”, lembra.

Citando sua experiência pessoal, Onisajé ressalta ainda que antes de qualquer revolução, é preciso cuidar da saúde psíquica das mulheres negras, que muitas vezes enfrentam um adoecimento mental decorrente das pressões sociais e discriminações que sofrem.


“Eu acho que não é possível nenhuma revolução sem saúde psíquica, e o que eu tenho mais visto entre nós, mulheres pretas, é o nosso adoecimento mental. O quanto nós estamos desgastadas e cansadas de coisas danosas para nossa existência subjetiva, emocional. Então, nesse Julho das Pretas, eu diria às minhas irmãs pretas que se cuidem, cuidem de Ori [orixá da cabeça], façam terapia”, pede.

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