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AJEUM DA DIÁSPORA: COZINHA ALÉM DO ATLÂNTICO



A diáspora africana, fenômeno histórico e social que se caracterizou pela imigração forçada de homens e mulheres do continente africano para países que adotavam a mão de obra escravizada, foi marcada pelo encontro de culturas e pela troca de saberes nos mais diversos segmentos – seja na fé, na maneira de celebrar e também na gastronomia. Quem passa desavisado em frente ao endereço de número 157, no bairro do Tororó, mal sabe que lá dentro é possível conhecer e experimentar alguns desses saberes e encontros gastronômicos. É lá que funciona o Ajeum da Diáspora, um restaurante que também é casa.


“Há 5 anos, resolvi fazer uma ressaca de carnaval e liguei para algumas pessoas que eu conheço. Alguns vieram e no outro dia já começaram a me ligar: ‘E aí, tá aberto? Vai ter comida?’ (risos) Não tive como fugir, porque eu moro aqui, né? Fui lá na geladeira, fiz uma mistura, comprei mais algumas coisas, fizemos a comida e assim começou. Sem nenhuma pretensão, não tinha nome, não tinha nada. Então pensei em ‘Ajeum’, que é ‘comer’ em iorubá. Comer celebrando, comer compartilhando, como a gente faz aqui. Mas achei que a palavra sozinha ficaria muito solta, e aí resolvi colocar ‘Ajeum da Diáspora'”, relembra Angélica Moreira, chef, moradora e proprietária da casa.

Ela conta que o nome acabou dando um norte para as receitas que seriam preparadas, sempre focadas em pratos de países do continente africano e também na culinária afro-brasileira. Angélica faz pesquisas, conversa com pessoas, usa a criatividade e, muitas vezes, reinventa receitas. No dia de nossa visita, o prato foi caril de carneiro, inspirado na África do Sul e “nas vivências de fundo de quintal das cidades do interior baiano”, como é descrito na chamada da página do Ajeum no Facebook.


Para beber, as opções são o Fufu (mistura de coco, leite condensado, gengibre e cachaça Abaíra), o Dedeu (batida de tamarindo com Abaíra) e o Jaja (bebida feita com maracujá), além do suco do dia e da cerveja gelada.


As mesas separadas para os clientes são distribuídas entre alguns cômodos da casa. O primeiro, próximo à entrada, possui estantes recheadas de livros sobre a cultura negra. Para que o espaço consiga comportar a quantidade ideal de pessoas (30, aproximadamente), é necessário que se faça uma reserva prévia – os pratos só são servidos aos domingos. Questionada sobre a possibilidade de abrir um espaço que abrigue apenas o restaurante, Angélica descarta.


“Eu tenho 58 anos, vou fazer 60 daqui a pouco. Se eu tivesse começado antes, talvez até pensasse em abrir, mas restaurante dá muito trabalho. Além disso, eu faço várias coisas, oficina, coquetel, em Salvador e fora de Salvador. Não é que eu esteja acomodada, mas é que a proposta de receber em casa também é muito importante. Você chega e se sente acolhido. É uma coisa diferente”, ressalta.

Cozinha de resistência


Angélica Moreira é pedagoga por formação e ekedi de Oxum do Ilê Axé Opô Afonjá. Atuante no movimento negro, foi casada com um ourives que criava joias de orixás – ele responsável pela produção, ela pelas vendas.


“Quando me separei, há 6 anos, me bateu uma angústia, porque não era eu que fazia as jóias, eu vendia. Se você me pedir para dar uma aula de prata eu sei dar, só não sei dar uma solda. (risos) Isso foi uma coisa que sempre me incomodou muito e eu queria me dedicar a algo que eu dominasse, que eu mesma fizesse, tivesse autonomia e fosse senhora de mim”, recorda.

Veio, então, a cozinha, ofício cujos truques ela conheceu desde cedo. Filha de uma lavadeira e cozinheira que criou quatro filhos sozinha, Angélica aprendeu ainda menina a reinventar receitas com ingredientes limitados.



“Nós, mulheres negras, não tínhamos essa coisa de não gostar disso ou daquilo. A gente fazia tudo porque era o que nós tínhamos para fazer. Então, criava-se mágica do pouco alimento que tinha em casa. As mulheres negras da minha faixa etária dificilmente não sabem cozinhar. Até porque esse foi o espaço delegado para nós, historicamente”, destaca.

A “cozinha de resistência”, como é denominada a proposta do Ajeum da Diáspora, deu a tão sonhada autonomia para Angélica, que já teve oportunidade de cozinhar – e abrir as portas de sua casa – para o renomado chef e apresentador de TV norte-americano Anthony Bourdain e, mais recentemente, para a ativista e filósofa Angela Davis.


“Nestes 5 anos, graças aos orixás, graças a minha mãe Oxum e a Xangô, que é o dono da cozinha, tenho tido muita satisfação, muito prazer. E seguimos invetando e reinventando, porque cozinha é assim: se você sabe fritar um ovo bom, você sabe fazer qualquer coisa”.

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