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A FÉ NAS CRIANÇAS: O CARURU DE SETE MENINOS

Atualizado: 29 de dez. de 2021


Conta o mito do caruru, descrito no livro “Cozinhando História: receitas, histórias e mitos de pratos afro-brasileiros”, que, atraído pelo cheiro do amalá – comida servida ao rei Xangô, Exu entrava em seu palácio, feito um pé de vento, diariamente, para devorar toda a sua refeição. Cansado de sentir raiva pelo atrevimento, Xangô contou com a ajuda dos seus dois filhos gêmeos, os Ibejis, para armar-lhe uma cilada. Um dos gêmeos, então, fez um trato com Exu. Iria tocar o batá, instrumento percussivo do candomblé, para que o orixá dançasse sem parar.


Confiante de que era o rei da dança, Exu topou, mas não sabia que ali se encontravam dois meninos iguais que, com esperteza e agilidade, revezariam o instrumento e o fariam cair em exaustão. Diante da derrota, não mais roubaria a comida de Xangô. Agora seria ele sempre o primeiro a ser servido com um pratinho separado do lado de fora do palácio. Já os Ibejis, como recompensa, pediram ao pai que, quando tivesse amalá, ele os reservasse uma parte sem pimenta.


Para celebrar esse dia, anualmente os Ibejis são homenageados com o caruru, um prato semelhante ao amalá que não leva carne e nem pimenta. Essa tradição, reforçada por esse e outros mitos, é sincretizada com os santos católicos Cosme e Damião e faz parte do cotidiano de centenas de devotos que se reúnem, durante o mês de setembro, para oferecer o caruru a familiares, amigos e até desconhecidos que, por ventura, se façam presentes no festejo. Como toda comida de santo, o caruru tem o intuito de partilhar, com fartura e por meio da fé, a prosperidade, saúde e bonança entre os presentes.


Nascido no Recôncavo Baiano, o comerciante e babalorixá André Nery já coleciona 22 anos de tradição. Seu caruru, oferecido na Feira das Sete Portas, na barraca Chapéu de Couro – onde vende artefatos, folhas e imagens dos ritos sagrados, já mobilizou até cerca de 700 pessoas em uma estreita rua do mercado a céu aberto. O hábito teve início com sua mãe, quando ele ainda era uma criança, antes mesmo que seguisse o chamado do candomblé. Nascido no mês de setembro, o menino cresceu acompanhando a mobilização em torno do caruru realizado dentro da sua própria casa.


“Minha mãe estava grávida de mim quando foi comer um caruru e sofreu uma forte dor no estômago. No dia seguinte, foi parar no hospital. Nasci logo após o acontecido. O caruru sempre foi presente na minha vida, acabei criando uma enorme devoção”, diz o religioso.



A preparação da comida é liderada por André, que conta com a ajuda de seus filhos de santo. O ritual acontece para além da cozinha e, antes mesmo de começar, os envolvidos devem passar pelo banho de folhas.


“O caruru é, antes de tudo, uma oferenda. O meu leva o quiabo dos Ibejis, o inhame de Ogum, a batata de Ossain, o feijão fradinho de Oxum, a farofa vermelha de Exu, a banana de Oxumarê, a galinha… É um conjunto de comidas de santo, da pipoca ao milho branco. Através dele todos os orixás se alimentam”, garante.


A matriarca, agora com 73 anos, se faz presente durante todo o preparo, sempre ajudando em uma coisinha ou outra.

Depois de pronta, a iguaria é servida dentro de sua loja, no dia 27 de setembro. A especificação da data, conta André, foi uma determinação do seu Erê, entidade criança que lhe acompanha desde a sua iniciação religiosa. É também no seu comércio que está assentado um Ogum, feito por sua mãe de santo há mais de vinte anos, a falecida Cidália de Iroko. Lá se pode encontrar, logo na entrada, uma imagem de Cosme e Damião, exibindo um prato de balas, pirulitos e queimados durante todo o ano.


“Eles estão sempre assim, repletos de doces. Nunca falta. Quando acontece de faltar, imediatamente corremos para repor”.

A tradição do Caruru é adotada também por restaurantes na capital, principalmente aqueles que trabalham com a culinária baiana, recheada de muitos pratos afro-brasileiros. O Dona Mariquita, localizado no Rio Vermelho, prepara um prato com doze itens, intitulado Caruru de Cosme e Damião, que é servido durante todo o mês de setembro. Leva caruru, vatapá, xinxim de galinha, feijão preto, feijão fradinho, farofa, pipoca, rapadura, banana frita, acarajé, abará e arroz.


“Fazemos um trabalho de resgatar as comidas típicas que deixaram de fazer parte do dia a dia, como é o caso do caruru completo. Para você ter ideia da importância do caruru, antigamente, a popularidade da pessoa era medida pela quantidade de carurus que ela era convidada. Imagine?!”, relembra a chef e proprietária Leila Carreiro.

O cheiro das comidas, durante a preparação, retoma uma lembrança importante da sua infância.


“Minha mãe era devota de Cosme e Damião e essa memória me transporta pra a casa dela, onde todo mundo fazia um fuzuê na hora do preparo, cortava quiabo com a faca sete tostões e seguia todo aquele ritual”, lembra.


Para dar um caruru, contam os adeptos mais tradicionais, você deve, antes de qualquer coisa, servir sete crianças, que devem comer com as mãos, em uma gamela de barro. De acordo com o babalorixá, em mais um mito dos orixás, certa feita tiraram um caruru para promover a cura de uma pessoa enferma. Somente os Ibejis tinham o poder da cura e, por esse motivo, os sete meninos foram convidados a comer aquela comida utilizando as mãos. Depois da refeição, as esfregariam corpo do doente, livrando-lhe daquela enfermidade.


“E assim foi feito, e assim se deu a cura”, pontua André.

Independente da quantidade de quiabos cortados na preparação do agrado para os pequenos curandeiros, Cosme e Damião, os sete Ibejis, comemoram com fé, alegria e muitos doces o mês em sua devoção. Alimentando com abundância a criança faminta e levada que existe dentro de cada um de nós.


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