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A COR DA DISCÓRDIA: ENTENDA A POLÊMICA DO ‘ACARAJÉ ROSA’


Foto: Reprodução


Baiana tentou inovar tingindo o bolinho de Iansã em homenagem a Barbie e a ideia rendeu discussão sobre descaracterização da cultura afro-baiana


Acarajé é a comida de Iansã, orixá das tempestades e com fama de briguenta no panteão afro-baiano. Talvez, por isso, mudar a cor do bolinho frito mais famoso de Salvador tenha rendido treta dentro e fora da internet. Inspirada na estreia do filme da Barbie, a baiana Adriana dos Santos, conhecida como Drica, pode ter exagerado na pimenta ao tingir o sagrado de rosa.


A ideia marqueteira dividiu opiniões. De genial a blasfêmia, na última semana, todo mundo deu pitaco na polêmica. Até quem nem gosta tanto assim de acarajé.

Apesar do sucesso de vendas do ‘acarajé da Barbie’, em Itapuã, onde Drica tem seu tabuleiro, e da avaliação positiva de profissionais da publicidade pela sacada de mestra da baiana, a questão sobre uma possível descaracterização de um elemento, que é símbolo identitário da cultura de matriz africana, gerou acirrado debate entre outras baianas de acarajé, antropólogos e pesquisadores das ‘comidas de santo’.


Vale lembrar que o acarajé - e seus modos tradicionais de preparo – é acervo imaterial tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

No início da semana, após a divulgação do bolinho cor-de-rosa tomar fôlego nas redes sociais, Adriana viu seu perfil profissional ganhar 8 mil novos seguidores no Instagram, ultrapassando a casa dos 97 mil. De acordo com a proprietária do Acarajé da Drica, a ideia surgiu de uma admiração dela e da filha pela Barbie, mas também como uma estratégia de marketing, a exemplo de outras empresas do ramo alimentício, que começaram a mudar a cor dos alimentos, como pães de hambúrguer, pizzas e até mesmo crepes, para impulsionar as vendas na carona da estreia do filme.


“A gente já tinha o perfil do Instagram bem avançado e nossos seguidores gostam dessas ‘trends’ [tendências]. Fizemos o experimento em uma pequena quantidade de massa e vimos que o sabor não mudou”, afirma Drica, salientando que não venderia o bolinho caso o sabor fosse modificado. A intenção era vender apenas combos e barcas, mas a repercussão chegou a gerar uma disputa da nova versão da iguaria com a tradicional e clientes que foram a Itapuã na quarta-feira (19) buscavam o acarajé cor-de-rosa.

A presidente da Associação Nacional das Baianas de Acarajé (Abam), Rita dos Santos, afirma que a invenção desrespeita um elemento ligado diretamente à tradição de religiões de matriz africana.


“Baiana de fato é aquela que, mesmo não sendo de religião de matriz africana, respeita e sabe a origem do acarajé. [A nova versão] brinca com a cultura e com o sagrado de uma religião”, pontua Rita dos Santos.

Por não ter modificado o sabor do bolinho, Drica acredita não ter desrespeitado movimentos baianos de defesa da cultura afro. Mas, mesmo recebendo o apoio de boa parte dos consumidores, as críticas a deixaram angustiada.


“Recebi várias críticas, mas não quero absorver. Não estou mais lendo comentários nas redes sociais, para não me abater, porque eu fiquei muito abalada”, disse a baiana, que resolveu abreviar o tempo em que pretende comercializar o acarajé rosa.

Para o presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-Ameríndia, Leonel Monteiro, qualquer alteração feita em um bem cultural traz danos à imagem e a perpetuação da tradição ancestral. “Não é um simples elemento de alimentação. Estamos falando de um produto que tem a sua origem na cultura ao orixá e que possui sua tradicional forma de ser feita”, explica, reforçando, como Rita dos Santos, o desrespeito ao sagrado.



Crédito: Paula Fróes/CORREIO


Ao analisar a aceitação do quitute cor-de-rosa por boa parte do público, Leonel Monteiro destaca a falta de conhecimento da maioria dos consumidores, comparando a forma de repercussão da invenção com os possíveis transtornos que seriam gerados caso a anilina cor-de-rosa fosse utilizada para a confecção da hóstia, o pão consagrado que simboliza o corpo de Cristo para os cristãos católicos durante a comunhão.


“Imagine o alvoroço que isso iria causar. Isso demonstra a falta de entendimento sobre a preservação dos nossos bens culturais. Temos que respeitar o sagrado, ainda que não pertençamos a um segmento religioso. ”

O escritor e jornalista colombiano Nelson Cadena, morador de Salvador há 50 anos, analisou a versão Barbie da iguaria por duas vertentes: pelo tombamento histórico do acarajé, que prevê a preservação de um item alimentício identitário, mas compreendendo a ação promocional de Drica, apontada como algo passageiro por ele.


“A gente tem que compreender que a Drica quis fazer uma ação promocional, como muitos fizeram. É uma coisa passageira. A gente sabe que os baianos não vão aprovar o acarajé cor-de-rosa no cotidiano, muito menos com mistura de anilina ou de ingredientes que não são adequados para o preparo da iguaria”, opina Cadena.

A publicitária Adriele Gama, uma das fundadoras da Liga Propaganda e Marketing, avalia a estratégia de Drica como uma ferramenta de enriquecimento da cultura, de forma inovadora e inteligente, mostrando ao mundo que as baianas estão surfando na 'onda pink'.


"A pizza é tombada pela Unesco e, no entanto, nós estamos o tempo todo querendo reinventá-la. Não considero [o acarajé rosa] uma ofensa, mas uma forma de enriquecer ainda mais a cultura", pontua.

Onda pink x Acarajé


Vilson Caetano Júnior, babalorixá e antropólogo, doutor em Ciências Sociais e com pós-doutorado em antropologia, contesta a motivação da campanha do acarajé rosa ao avaliar o contexto histórico da idealização da Barbie, boneca branca, loira, magra de uma forma a frequentemente ser associada à anorexia e norte-americana. Do outro lado está o acarajé, elemento associado a uma comida africana que faz menção à ancestralidade dos orixás e também tem um significado político.


“É uma comida que traz a memória de pessoas que, desde cedo, quando escravizadas, alimentaram a cidade. Não precisamos do acarajé rosa. Não precisamos homenagear a Barbie”, pontua Vilson.

A ‘onda pink’, proveniente das estratégias empregadas na divulgação do filme da Barbie, inundou o mercado de vários segmentos. No entanto, o problema está na alteração de elementos identitários em prol da necessidade de vender. É o que aponta Tobias Muniz, comunicador e pesquisador de Cidades, Cultura e Povos Tradicionais.


“A partir do momento que o acarajé se torna patrimônio tombado, ele preserva a história de um povo. É um elemento nacional, étnico, de um grupo, que não pode ser descaracterizado”, afirma.

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