São Salvador. Bahia de São Salvador. Rio Vermelho, Rua Alagoinhas de número 33. Em um ordeiro logradouro, entre as resistentes casas de antigos pilares, no seu farto pomar, embaixo da mangueira com dois bancos testemunhos, repousam, lado a lado, Jorge Amado e Zélia Gattai. Eis ali o seu testamento evidenciando sua vontade feita.
A casa, adquirida pelo escritor nas mãos do pianista italiano Sebastian Benda, foi comprada com o dinheiro da venda dos direitos do livro “Gabriela cravo e canela”, e é seu ponto geográfico no mundo.
Foi lá onde escolheu viver, morrer e eternizar sua história, que pode ser acessada hoje através de um memorial idealizado pela família Amado, realizado pela Prefeitura de Salvador, com abertura em novembro de 2014.
A principal incentivadora do sonho, a escritora Zélia Gattai, mudou-se para um novo espaço em 2004, depois da morte de seu companheiro, quando iniciou, ao lado de filhos e netos, a catalogação do acervo pessoal do casal. Participou ativamente do processo até 2008, quando faleceu aos 91 anos.
“Imediatamente me toquei para Salvador, comprei um terreno no Rio Vermelho e tratei de pôr de pé o projeto de minha vida: ter uma casa na Bahia.” - Bahia de Todos-Os-Santos: Guia de ruas e mistérios. Jorge Amado, 1986 (Edição Definitiva)
O Rio de Janeiro da década de 60 já não contentava o casal de escritores Jorge e Zélia. Preocupados com o excesso da oferta da droga e com a violência exacerbada da capital, o casal decidiu partir, na companhia dos filhos adolescentes, para Salvador, cidade de menor proporção com a possibilidade de vida tranquila. A busca pelo terreno ideal na nova metrópole foi extensa. Após fechar acordo com o antigo dono d’a casa, o espaço precisou passar por uma grande e duradoura reforma para que tivesse a cara de lar desejado pela família.
O jardim, espaço que contempla a maior parte de metros quadrados, é o primeiro acesso dos visitantes que chegam para conhecer a Casa do Rio Vermelho.
Ali é possível encontrar um Exu, encomendado ao ferreiro Manu, assentado nos princípios do candomblé por Mestre Didi, filho de Mãe Senhora. Nele pode-se observar as várias moedas deixadas por curiosos ou adeptos das religiões de matrizes africanas para agradar o mensageiro entre os mundos.
Adaptada para o acesso do público, tendo em vista a manutenção e o cuidado do acervo pessoal do casal, a casa dispõe de múltiplos espaços que ampliam as possibilidades das recorrentes visitas. Com 30 horas de vídeos e projeções sobre os diversos temas que circundam o universo dos Amados, é impossível conhecê-la em um único dia. Com tanta riqueza de detalhes, é necessária muita atenção para reparar os objetos do casal na varanda fechada, onde estão expostas obras populares adquiridas nas inúmeras viagens realizadas pela dupla, recebidas em forma de presentes ou até ‘roubadas’ de amigos íntimos pelo anfitrião – de forma a pregar peças, a exemplo do sapo de cerâmica japonesa que pegou do seu amigo Carybé.
“Muita gente me pergunta de onde vem essa paixão por sapos que tinha meu avô, mas não existe uma explicação complexa. Ele dizia que todo mundo tem um animal. O dele era o sapo”, conta Maria João, coordenadora de comunicação do memorial e neta de Jorge Amado e Zélia Gattai.
Além de diversos sapos na vidraça, é possível encontrar muitos outros espalhados pelo espaço, e ainda um lago feito em homenagem ao animal, no lugar onde ficava a antiga piscina.
Na sala, a máquina de escrever utilizada por Jorge repousa ao lado de seus óculos de grau e alguns rabiscos manuscritos. O espaço amplo, com janelas de vidro e perceptível sistema de circulação de ar natural, é marcado por referências populares em quadros, obras de artes e discos da época. No quarto de visitas estão expostas algumas camisas do escritor, com estampas e cores, do jeito que se costumava vestir. No quarto do casal, onde estiveram juntos durante 40 anos, objetos pessoais podem ser observados enquanto assistimos a projeções que narram as várias facetas do amor na literatura de Jorge.
Nos outros dezessete espaços elaborados, traz a vida do casal traduzida em depoimentos, imagens, sentimentos, sons, fotografias, bonecos, vestimentas, mapas, cartas e muitas outras obras artísticas. O gradil de Mário Cravo, o portão de Carybé e as pedras de Udo Knoff são bons exemplos dos detalhes preciosos da casa, bem como o azulejo de Picasso e a placa de Chico Brennand.
O lar dos Amados recebeu visitas ilustres como Pablo Neruda, Tom Jobim, Dorival Caymmi, Glauber Rocha, Sartre e Simone de Beauvoir, entre outros tantos conhecidos e desconhecidos que não resistiam à visita.
“Aqui chegava gente o tempo inteiro. Às vezes ele não conseguia trabalhar. Ônibus turísticos faziam dessa casa uma rota cativa, e as pessoas paravam à porta para conhecerem Jorge e Zélia”, descreve Maria João.
Com as recorrentes e inesperadas visitas de fãs, ficou difícil escrever e morar no mesmo lugar. Jorge comprou um imóvel na Pedra do Sal para trabalhar sossegadamente.
“Não durou um ano”, complementa a neta.
Logo foi descoberto pelos turistas, que passaram a visitá-lo no novo endereço.
“Certa vez Zélia entrou no quarto deles, nessa nova casa, e lá estava uma moça, deitada, tirando uma fotografia na cama de Jorge Amado”, completa.
A curiosidade e aproximação com a vida do casal é um traço comum aos soteropolitanos, baianos e brasileiros que visitam a casa durante todo o ano. Com detalhes desde a infância até a passagem de Jorge e Zélia, é quase possível experimentar o dia a dia do casal enquanto ocupavam aquele espaço. Se sentarmos no banquinho, sob a sombra da mangueira e acima de onde estão enterradas suas cinzas, em uma conexão mais íntima, é possível sentir a presença de ambos, aproveitando a brisa do jardim.
“Nós os sentimos o tempo inteiro. Mas isso não é algo restrito à família, muitos visitantes dividem conosco essa experiência. As pessoas chegam falando que eles estão aqui, nessa casa”, finaliza Maria João. Bem como não existiria um separado do outro, em vida ou pós vida, não teria melhor lugar para que pudessem bem juntinhos, enfim, repousar suas andanças.
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