top of page
site-sma.png

PEDRA DE XANGÔ, O PALÁCIO URBANO DO REI



A pequena fenda em meio à estrutura rochosa de oito metros de altura significava liberdade. Uma condição utópica para homens e mulheres em regime escravo na Salvador de 1820. Ao redor da mata fechada, uma concentração de senzalas. Um rio também já passou por ali. Na pedra, a oportunidade perfeita: o limite entre terras capaz de livrá-los do pesadelo de servir à supremacia de homens brancos, sem vontade própria, desprovidos de remuneração e de direitos humanos básicos. Um sistema brutal que não lhes dava outra escolha a não ser a fuga.


A Pedra de Xangô, tombada como Patrimônio Cultural da capital baiana em maio de 2017, é símbolo de um dos mais antigos quilombos que se tem notícia, o Quilombo Orobu. Serviu como esconderijo e passagem de negros que buscavam escapar do pesadelo da colonização, e representa um marco de resistência na história e na cultura do povo de santo da capital baiana.

O lugar que serviu de refúgio, hoje pode ser facilmente avistado em uma grande avenida no bairro de Cajazeiras X. Antigamente conhecida como Buraco da Onça, a rocha era cercada por uma vegetação densa e fechada que dificultava o acesso de capatazes que saiam em busca dos insubordinados ao sistema opressor. Poucos deles podiam perceber sua presença. Os que a notavam, não sabiam que a era oca e tão pouco investigavam seu interior. A Mata Atlântica fazia com que o trabalho de encontrar os foragidos fosse algo fora do comum.


Contam que, com o caminhar dos anos, o Quilombo Orobu se estabeleceu nas redondezas, mas a repressão não deixaria que durasse muito tempo. No dia 17 de dezembro de 1826, o Batalhão Pirajá dizimou seus ocupantes usando como desculpa uma série de acusações de violências, dentre elas, o sumiço de uma menina branca. Um ataque sangrento. Os quilombolas que sobreviveram, recuaram. A pedra seguiu oca e silenciosa, ainda resguardada pelo verde da região.


Para Xangô, o orixá da justiça


Centenas de anos se passaram até o dia em que o Buraco da Onça ganhou o nome de Pedra de Xangô. A designação veio do próprio orixá, através do Ifá, facilitador divinatório das religiões de matrizes africanas.


Mãe Iara de Oxum, do terreiro Ilê T’Omím Kíósísé Ayó, caminhava pela região para fazer suas obrigações de costume, em 1990, quando se surpreendeu com sua presença. Correu para os búzios, onde descobriria que Xangô respondia por aquele Otá, símbolo consagrado através de ritos dedicados às divindades do panteão africano. Para ela e seu povo, um presente dos orixás. As visitas ficaram cada vez mais frequentes.

Luta e resistência

Com a abertura da Avenida Assis Valente, em 2004, a pedra ficou aparente. Começava a luta pela sua integridade e preservação. Enquanto os adeptos do candomblé tornavam ainda maior o seu valor, através de cerimônias de agradecimento, demais religiosos se incomodavam com a presença do espaço sagrado na via urbana e se viam no direito de evidenciar suas intolerâncias. Acharam de atacar o monumento, pichando mensagens odiosas e destruindo as oferendas que descansavam os intuitos de uma vida farta e tranquila daqueles que historicamente sofrem a opressão de uma sociedade desigual.


“Tudo que é do povo de santo, tudo que é do povo negro, é rodeado de muito preconceito. Em 2014 jogaram mais de 200 quilos de sal grosso na pedra. O povo de santo lutou muitos anos pelo seu tombamento, realizando a Caminhada da Pedra de Xangô”, declara mãe Iara, que preside a Associação Pássaros das Águas, responsável por reunir mais de 15 terreiros de candomblé em Cajazeiras.

Mesmo tombado como Patrimônio Cultural de Salvador, o palácio de Xangô virou depósito de lixo.



“Quando vamos fazer nossos ritos, limpamos o espaço e preparamos tudo. Mas isso é muito cansativo. É algo que deve ser feito pelo poder público”.

A região de 17 hectares foi oficializada como Área de Proteção Ambiental, mas os novos responsáveis continuam ignorando a sua presença. Depois de algumas promessas para que o espaço recebesse ciclovia, anfiteatro e um local reservado para cultos religiosos, ninguém tocou mais no assunto. Não esboçaram um plano ou estipularam prazo para colocá-lo em prática. O que se pode ver, ao visitar o espaço, é desanimador: entulhos, restos de comidas e alguidares – pratos de barro utilizados para oferendas, quebrados.


Enquanto o tempo passa e a mata vai sendo engolida pela especulação imobiliária, resta ali a vistosa pedra, desnuda, contando com a proteção do rei e o cuidado daqueles que para ele se curvam em devoção.


“A minha parte foi feita. Os orixás definiram. Xangô me chamou, minha filha, eu vou”, completa a ialorixá.

FONTE:

bottom of page