Quem acompanha com os olhos atentos a tradicional saída de Carnaval do Ilê Aiyê pelas ruas do Curuzu, no bairro da Liberdade, consegue logo reparar: senhorinhas cantam e dançam das janelas de suas casas; crianças e adultos sabem de cor as letras que falam de resistência e exaltação ao povo negro. Toda a comunidade, embalada pelo som dos tambores do primeiro bloco afro do Brasil, parece viver uma espécie de catarse coletiva. É dia de ver o Ilê passar.
Fevereiro acaba, o Carnaval também. Os olhos de foliões, turistas, jornalistas e celebridades se voltam para outros assuntos e badalações, mas na Senzala do Barro Preto, sede da Associação Cultural Ilê Aiyê, o trabalho continua para além do bloco que arrasta multidões.
“Aqui na sede, temos a Escola Mãe Hilda, da alfabetização a 5° série, onde a gente trabalha todas as matérias básicas, mas com um diferencial: o Projeto de Extensão Pedagógica (PEP). A cada ano a gente escolhe um tema e esse tema gera um trabalho de pesquisa passado para os compositores, que aí têm que produzir música e poesia baseadas na pesquisa inicial. Esse material é passado para o artista plástico, Mundão, que faz um ‘ajuntamento’ de ideias e materializa isso em toda a parte visual. Depois de tudo finalizado, temos em mãos o Caderno de Educação, onde podemos desenvolver várias atividades pedagógicas com os meninos”, explica Edmilson Alves, educador, diretor do Ilê e um dos responsáveis pelo PEP.
A cada ano, o Caderno destaca a estética africana e conta histórias de heróis, heroínas e civilizações negras – também cantados pelo bloco -, sempre aproximando-os do contexto brasileiro. “Negros do Sul – Lá também tem!”, por exemplo, foi o tema de 2012 que abordou a presença negra no Sul do país, detalhando manifestações culturais, costumes e personalidades ilustres. Candaces, Malês, tambores do Maranhão, entre outros, são aplicados pedagogicamente no conteúdo programático em forma de música, poesia e leitura, ensinando crianças e adolescentes a parte da História que nem sempre (ou quase nunca) é trabalhada em outros espaços. Daí a relação forte de representatividade existente entre o Ilê Aiyê e o endereço onde nasceu e que ainda ocupa: a Liberdade, bairro de maior população negra do Brasil.
“O menino pode chegar aqui e ter a dificuldade de ler. Mas ele não tem a dificuldade de cantar. Aí você pega uma música dessas, tema do Caderno, o menino começa a cantar. Entra ‘aletramento’, entra estudo da História – e olha que o foco era só cantar -, e você descortina o pensamento desse menino. Se ele canta, automaticamente ele começa a juntar palavras, trabalhar interpretações. E assim você consegue atingir desde o ensino básico até a universidade por meio do PEP”, ilustra o diretor do projeto.
A Escola Mãe Hilda nasceu em 1988, por iniciativa da ialorixá que dá nome ao espaço de ensino. Mãe de santo do terreiro Ilê Axé Jitolu e líder espiritual do bloco desde a fundação, em 1974, até sua morte em 2009, mãe Hilda resolveu abrir as portas de sua casa de axé para que filhos e filhas de santo e a comunidade em geral, pudessem adquirir uma ferramenta crucial de luta: conhecimento. Hoje, além da escola, a Associação Cultural Ilê Aiyê também oferece oficinas de dança, percussão e estética afro. Ainda há espaço para atividades ligadas à cidadania e relações interpessoais, sempre trabalhando a autoestima dos alunos e provocando questionamentos sobre seu espaço na sociedade.
Em uma das várias salas que fazem parte sede, meninas e meninos aprendem a trançar o cabelo e a amarrar torsos e turbantes com Dete Lima, figurinista do Ilê Aiyê e uma das responsáveis pela direção do bloco ao lado dos irmãos Antônio Carlos “Vovô” dos Santos (presidente) e Vivaldo Benvindo dos Santos (diretor), todos filhos de sangue de Mãe Hilda.
Há também salas reservadas para as aulas de dança e percussão, onde os alunos aprendem a tocar instrumentos como caixa, repique, timbal, entre outros. O objetivo, contudo, não é apenas formar percussionistas profissionais.
“A gente não quer só que eles toquem e sejam músicos, mas que sejam médicos, doutores, advogados ou até um varredor de rua. Nós não queremos é vê-los na TV, presos. Aí tudo vai ter sido em vão. Esse projeto que a gente faz não é só pra tocar, tem que ser um pai ou mãe de família, bom marido, pessoa de boa índole”, conta Vinicius Silva, um dos instrutores da oficina e percussionista na Band’Aiyê, a banda do bloco.
Sustentar uma estrutura como esta custa caro e a Associação trabalha duro para financiar todos os projetos. A venda de ingressos nos shows realizados ao longo ano pela banda, por exemplo, é uma das fontes de renda do Ilê. Só a escola Mãe Hilda absorve 40% dos recursos, de acordo com Edmilson. Além do bairro da Liberdade, também são realizadas ações sociais nos bairros Valéria e Mussurunga, onde a população é majoritariamente negra e de baixa renda.
“Levar a dança, a percussão e a estética para o bairro da Valéria é uma novidade e como é uma novidade, as pessoas não tomam conta de pronto, é um processo. Mas eles absorveram. Na Mussurunga também. Aqui na Liberdade, você está dentro de um bairro que tem uma cultura afro, onde o movimento negro acontece, mas em outros lugares isso não é tão específico como é aqui, então cabe a nós levarmos”, afirma o diretor.
No Ilê Aiyê desde o início da década de 90, Edmilson é educador por natureza. Conversa como quem ensina, explicando tudo de forma didática, deixando que o interlocutor desenvolva o raciocínio por conta própria. Falando sobre o orixá Xangô, incita questionamentos sobre justiça social nos alunos; uma conversa a respeito de Obaluiyê, senhor da cura e também da morte e das doenças, pode virar um debate acerca da saúde pública na cidade. Assim, crianças e adolescentes da Liberdade ganham um olhar crítico sobre cidadania e empoderamento.
“Ao levantar de manhã, eu olho no espelho e digo: ‘o mais belo dos belos sou eu’. Eu sou o cara mais bonito que eu conheço. Procuro melhorar minha beleza interna. O tempo todo eu tenho que ser reflexo para esses meninos, eu tenho que acreditar muito nisso. Esses garotos e garotas são extremamente lindos e não se dão conta de que são lindos. É latente, mas o tempo todo ficaram dizendo para eles que não. Meu papel como educador é fazer com que eles se percebam”, ressalta.
Quando fevereiro chega e a ladeira do Curuzu abre alas para o bloco passar, não é exagero ao se cantar: a coisa mais linda de se ver é o Ilê Aiyê.
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