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HUGO CANUTO E OS CONTOS DOS ORIXÁS



“Em um tempo antigo, deuses e heróis caminharam entre os homens. Travaram batalhas com furor, ensinaram a curar e lidar com a terra, o ferro e o fogo, reinaram e amaram com a mesma intensidade. Alguns desceram do luminoso Orum para realizar seus destinos, enquanto outros nasceram no Aiyê e pelos grandes feitos se tornaram Orixás, marcando para sempre a história de dois continentes.” [1]

Os itan que narram histórias de como Exu ganhou poder sobre as encruzilhadas, como Xangô foi aclamado o orixá da justiça ou mesmo como Obatalá criou o mundo e os homens com a ajuda do barro de Nanã são alguns dos muitos que fazem parte do conjunto de narrativas mitológicas dos orixás da cultura iorubá. Transmitidas oralmente ao longo dos séculos, dos mais velhos aos mais novos, as histórias ancestrais que englobam a visão de mundo de um povo cruzaram o Atlântico e, por aqui, às custas de muita luta e resistência, foram preservadas, ressignificadas e mantidas vivas graças, especialmente, aos terreiros de candomblé.


Pelas mãos do quadrinista baiano Hugo Canuto, algumas dessas epopeias ganharam um novo meio de transmissão: os quadrinhos. A revista “Contos dos Orixás”, idealizada e produzida por ele, utiliza a linguagem e o visual das HQs de super heróis para recontar algumas histórias da mitologia iorubá.


“Em 2016, muito de maneira intuitiva, surgiram algumas artes de orixás. Fiz a primeira, com intuito de querer provocar a reflexão do orixá como herói. E aí, à medida em que eu comecei a levar adiante, passei a construir toda uma relação, um somatório de forças positivas”, recorda.

O desenho e as revistas em quadrinhos são uma realidade para Hugo desde a infância, quando andava nos sebos do bairro da Lapa à procura de gibis. Aos 15 anos, aproximou-se da arquitetura, descobriu a paixão por desenhar cidades e resolveu ser arquiteto. O amor pela arte e o desejo de viver dela, no entanto, sempre batiam à porta.



“Chegou uma hora em que eu estava para fazer 30 anos e pensei: ‘Olha, não dá. Se não for agora, eu nunca vou saber o potencial que eu teria com minhas ideias, com o que eu sonho, com o que eu penso’. Fui para São Paulo, juntei o dinheiro que eu tinha e passei dois anos estudando. É igual uma árvore crescendo para o lado errado, tem uma hora que começa a incomodar”, conta.

Antes de resolver largar a arquitetura para se dedicar à arte, em 2007, Hugo começou uma pesquisa sobre a ancestralidade indígena, inspirado na própria história de sua família: ele é bisneto de descendentes do povo kiriri, da aldeia de Mirandela, no norte da Bahia. Esse resgate familiar deu o mote para que fosse criada “A Canção de Mayrube”, graphic novel construída a partir de narrativas dos diversos povos e mitos que formaram a América.


Para criar o universo de Mayrube, o ilustrador também buscou inspiração na história das civilizações do continente africano. Nasce a partir daí, o embrião do que viria a ser “Contos dos Orixás”.


“Em Mayrube, tem muito da pesquisa africana já naquela época, porque eu ia falar dos orixás, mas de uma maneira secundária. Em paralelo a isso, em 2014, eu tive um contato muito forte com o candomblé, que foi um marco na minha vida, embora eu sempre tivesse gostado, estudado e pesquisado a respeito da mitologia e da religião”.

Em 2014, ainda como arquiteto, trabalhando para o Governo do Estado, Hugo foi mandado para uma reunião no bairro de Cajazeiras. O motivo era a Pedra de Xangô, que havia sido alvo de agressões religiosas, como pichações e oferendas destruídas. Ao ver de perto a realidade dos terreiros da periferia de Salvador, o então arquiteto passou a conviver com algumas lideranças religiosas da região e buscar maneiras de ser útil na luta contra a intolerância.


Dessa inquietação, nasceu o projeto “Contos dos Orixás” que, inicialmente, seria composto por 60 páginas – ao final do processo, que durou dois anos, viraram 120.


“Eu fui atravessado por essa ideia e vi esse trabalho como uma maneira de fazer da minha arte um agente de transformação. E ele está transformando as coisas, de alguma maneira, empoderando as pessoas, levando autoestima, desconstruindo preconceitos. Isso não tem preço.”, reforça.

Ao longo da criação, Hugo contou com a consultoria do escritor, professor e sacerdote Mawó Adelson de Brito e de outras lideranças do candomblé que acompanharam todo o processo. Além da extensa pesquisa bibliográfica e também junto aos terreiros, o quadrinista fez curso de cultura e língua iorubá para compreender melhor o contexto das histórias. O intuito, segundo ele, foi construir o projeto de maneira a respeitar os fundamentos da religião, embora não se trate propriamente de um trabalho religioso.


“Eu procurei fazer tudo com muito cuidado, para fazer uma coisa que honre a religião e a cultura, embora não seja um trabalho religioso. Eu não falo de uma casa específica ou dos elementos de uma iniciação. O foco não passa por falar de candomblé, ele faz o recorte do mito”, explica.


A partir do enredo principal, que tem Xangô como figura central, a história vai sendo amarrada à de outros orixás como Exu, Ogum, Oxóssi, Oxum e Iansã. A composição dos personagens foi feita a partir de estudos de pessoas de Salvador e Cachoeira e os desenhos pensados de forma a comunicar a personalidade de cada orixá: da cor da pele à indumentária, cada personagem traz um traço específico de sua história ancestral.

“Os fundamentos estão todos ali, mas eu criei um visual próprio, porque eu achava que seria muito errado eu trazer do terreiro uma construção do sagrado feita com o tempo e colocar literalmente na minha história. Minha alegria é ver que o pessoal leu e passou pelo crivo mais tradicional. Isso me deixou muito sereno e seguro. Esse trabalho exigiu muito de mim e eu dei tudo por ele porque eu acredito que pode jogar um oxigênio na cabeça de muita gente”. comemora.

Antes mesmo do lançamento oficial, programado para janeiro de 2019, os “Contos dos Orixás” já têm dado bons frutos: é citado como referência em salas de aula, livros didáticos, teses universitárias e exposições em países como Estados Unidos e Inglaterra. Caminhos abertos.





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